Durante a minha infância vivi em Vila Real, mesmo ao lado da bonita Capela Nova, por cima de um antigo estabelecimento comercial chamado Real. Mesmo em frente à nossa casa havia um lugar absolutamente encantador, que era a minha perdição — o "mítico" Bazar dos Três Vinténs, verdadeiro sonho de todas as crianças da cidade.
Como o meu pai desenvolvia a sua actividade profissional em São Tomé e Príncipe e apenas esporadicamente regressava à metrópole, e como os meus irmãos mais velhos estudavam no Liceu de Vila Real, morar ali acabou por ser a opção mais natural.
Foi na mesa da nossa sala, onde o Sol entrava pelas janelas e se avistava o sereno Rio Corgo e a sua imponente ponte metálica, que aprendi as primeiras letras e comecei a soletrar as palavras do jornal "O Primeiro de Janeiro", que o meu pai assinava religiosamente.
Quando ingressei na escola primária, mesmo em frente ao seminário diocesano, o mistério da leitura já se encontrava parcialmente desvendado para mim.
Foi precisamente por essa altura, no final do primeiro período lectivo, que os meus pais tomaram a importante decisão de regressar à minha terra natal, Oura. O meu irmão seguiria para a faculdade no ano seguinte e a minha irmã continuaria a frequentar o liceu, vivendo num quarto arrendado.
Lembro-me bem do primeiro dia na nova escola. A expectativa era grande, e um misto de nervosismo e entusiasmo percorria-me o peito. O meu novo professor era também o meu tio, Manuel Carvalho — o nosso querido Ti Manelzinho, como carinhosamente o tratávamos. Ele, orgulhoso, já tinha anunciado à turma que ia chegar um novo aluno... e que esse menino já sabia ler o jornal.
Mal entrei, e após os rituais de apresentação, fui chamado ao quadro para mostrar as minhas "habilidades". Mas o peso da timidez e do desconhecido foi mais forte. Com apenas seis anos, num ambiente novo, estranho, as palavras recusaram-se a sair. Emudecido, desatei a chorar e corri para casa, em busca do consolo doce e seguro da minha mãe.
O Ti Manelzinho ficou sem palavras. O brilharete que todos esperavam de mim... ruiu logo no primeiro dia.
Naquela época, a escola de Oura, como tantas outras espalhadas pelo país, dispunha apenas de duas salas de aula — a das raparigas, sob a orientação da professora Dona Albertina, e a dos rapazes. Em ambas, o número de alunos era elevado — cerca de quarenta –, divididos pelas quatro classes.
Apesar do arranque atribulado, cedo me apaixonei por aquela pequena escola. Ser sobrinho do professor trazia alguns privilégios, e os castigos colectivos — que por vezes se aplicavam com mão pesada — eram, no meu caso, aplicados com uma certa brandura. Lembro-me, aliás, de apenas um episódio em que fui realmente castigado.
Foi também por essa altura que começou a germinar em mim uma paixão profunda pela astronomia.
O meu tio, que, na sua infância, tinha observado a mágica passagem do cometa Halley, contava-nos com entusiasmo essa maravilhosa experiência, explicando-nos a periodicidade do fenómeno. Falava-nos das constelações com um fascínio contagiante, ensinando-nos a identificar a Ursa Maior, a Ursa Menor e a Estrela Polar — nomes que ficaram indelevelmente gravados na minha memória.
Nas noites escuras de Oura, quando o silêncio tomava conta do mundo e o céu se abria sobre mim, era para essas constelações que dirigia os meus olhos sonhadores. Também me recordo dos conselhos do meu tio sobre não olhar directamente para o Sol — alertas ingénuos, sim, mas ditos com tanto cuidado — "olhem através do fundo de uma garrafa de vidro escuro", dizia ele.
Um episódio, em particular, ficou gravado na minha memória como uma cena de um filme de mistério.
Estávamos numa tarde quente, pouco depois do almoço, quando alguém surgiu à porta da sala, ofegante. Murmurou algo ao professor e desapareceu. O Ti Manelzinho, com um ar repentinamente grave, subiu ao estrado e anunciou, em tom solene:
— Vem aí o inspector. Vamos embora. Depressa!
Saltámos das carteiras e seguimos atrás dele, em corrida desenfreada, em direcção ao pinhal que ficava a nascente da escola.
— Corram! Rápido! Está mesmo a chegar o inspector!
Cheios de medo do "bicho-papão" que se aproximava — como se fôssemos culpados de alguma traquinice —, corremos desalmadamente. Já no pinhal, fomo-nos escondendo atrás das densas giestas, obedecendo silenciosamente às ordens do mestre.
— Quietos! Nada de barulho. Não levantem a cabeça.
Ali ficámos, imóveis, até que o nosso mestre, após várias espreitadelas em direcção à escola, nos deu sinal de regresso. O "perigo" tinha passado.
Regressámos então à sala, de forma cuidadosa e silenciosa, como se nos tivéssemos livrado de um enorme perigo. Só muitos anos mais tarde percebi que o verdadeiro alvo da inspecção não éramos nós… mas sim o próprio Ti Manelzinho.
Ao chegar à quarta classe, a exigência aumentou — tanto para mim como para o meu colega Salvador, da Quinta das Bolas. Ambos nos preparávamos para prosseguir os estudos e teríamos de realizar o temido exame de admissão. Era necessário saber tudo — os rios, os caminhos-de-ferro, as serras de Portugal, e até os intrincados problemas de enchimento de tanques que nos faziam perder o sono.
Depois das aulas, comecei também a ir estudar para a casa do Ti Manelzinho, onde a afável tia Virinha — sua esposa — me recebia sempre com um sorriso caloroso e um lanche reconfortante.
Aí continuávamos a resolver os complexos problemas que me davam volta à cabeça. Em paralelo, comecei a preparar um trabalho manual — a colagem de fios de lã colorida sobre uma tábua de madeira lixada e envernizada, que representava uma casa na montanha.
O meu tio dizia que, no exame da quarta classe, teríamos de apresentar um trabalho manual. O plano era simples — levaria duas tábuas, uma ainda em branco, e outra quase pronta. Iniciaria a colagem na tábua vazia e, a meio da prova, trocaria discretamente pela outra, colando mais uns fios para simular o progresso.
No dia da prova, embora nervoso e com medo de ser apanhado, executei o plano. Os professores responsáveis pela avaliação elogiaram efusivamente o meu trabalho, chegando mesmo a destiná-lo a uma exposição.
O Ti Manelzinho — amigo, mestre, cúmplice das pescarias do meu pai — ficou para sempre gravado no meu coração. Pelo que ensinou, pela forma como cuidou de mim, pela ternura com que me guiou, foi uma dessas presenças que o tempo nunca apaga.
Paulo Coimbra
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