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2025-01-16

Um Aperto de Mão

“O rouquinho nunca mais morre”, dizia o Jorge, o meu irmão mais velho, sempre com aquele tom meio irónico e meio sério que era tão característico dele. A alcunha de rouquinho estava, claro, associada ao timbre inconfundível da voz de Salazar, ligeiramente aguda, cujos discursos me faziam lembrar a leitura do evangelho no púlpito da igreja.

À medida que o tempo passava, o Jorge repetia a sua frase com uma espécie de consolo, como quem tem uma verdade imutável nas mãos:

  • O rouquinho nunca mais morre!

Mas um dia, com um sorriso de satisfação nos lábios, o Jorge disse:

  • O rouquinho caiu da cadeira. Pode ser que seja desta…

De facto, foi após essa queda que Salazar sofreu as lesões que o impediram de continuar como Presidente do Conselho de Ministros. Faria ainda alguns anos de vida, mas o seu poder político já estava irremediavelmente quebrado. Marcelo Caetano, o novo rosto da ditadura, foi então chamado para o substituir, ocupando o cargo até ser deposto no 25 de Abril de 1974.

A minha irmã Luísa, que na altura estudava no Porto, não perdia oportunidade para desdenhar do governo. Com aquele espírito rebelde próprio da juventude, dizia que os homens do regime, e seus comparsas, ficavam com todos os “tachos” e ainda os rapavam bem rapados. Eu, com a imaginação fértil de um miúdo, via um bando de salteadores a invadir uma cozinha, a devorar tudo o que encontravam nas panelas e, no final, a roubar as próprias panelas.

Recordo-me também de uma piada que circulava na altura, sobre uma marca de papel higiénico chamada SMART. As letras, de forma jocosa, formavam uma sigla que dizia: Salazar Morreu Agora Resta Tomás. E, se virássemos o papel contra a luz e o invertêssemos, a palavra “WC” transformava-se magicamente em “MC”, assinando o produto com o nome do novo presidente: Marcelo Caetano.

Foi no início do seu mandato que Marcelo Caetano decidiu fazer uma visita ao norte do país, e a sua passagem por Vidago ficou na minha memória. Naquela altura, eu, ainda muito jovem e sem grandes noções políticas, mas sempre atento às conversas do meu irmão, imaginei que o novo presidente fosse trazer algo de novo, algo de bom.

Quando soube que ele viria a Vidago, pedi imediatamente à minha mãe, que estava em casa comigo (o meu pai, na altura, estava em São Tomé), para irmos vê-lo. Ela, com aquele seu espírito colaborativo que sempre teve, concordou sem hesitar. Era fim de tarde, e estacionámos o Peugeot 404 em frente ao Délio, já virado para regressar a Oura.

À medida que a multidão se ia aglomerando no largo onde existia a Farmácia Costa e também na parte inferior da Rua Alves Teixeira, a atmosfera começava a ganhar uma vibração palpável. Os tons cinzentos dominavam: homens vestidos com os seus fatos domingueiros, chapéus na cabeça e os rostos sérios, expectantes, aguardavam com ansiedade pela chegada do novo presidente. As mulheres, recatadas, com lenços na cabeça, observavam em silêncio, com os seus olhos brilhando de curiosidade e uma ponta de esperança.

Subimos as escadas da farmácia, à procura de um bom ponto de observação. E foi então que ele apareceu. A noite já tinha caído e o ar frio fazia-nos arrepiar a pele. Lá ao fundo, surgia Marcelo, vindo da Avenida Conde Caria, rodeado por homens de semblante grave e vestes escuras. Mas ele, por sua vez, era um contraste: sorria e cumprimentava as pessoas com uma simpatia contagiante. O entusiasmo da multidão foi imediato, como uma onda, quase o engolindo: “Viva!”, “Viva o Sr. Presidente!”, “Viva Marcelo!” – os gritos eram calorosos e cheios de fervor.

Eu estava fascinado, imerso naquele momento histórico que, para mim, tinha um brilho especial. A excitação, a adrenalina, faziam aquele momento parecer eterno, mas, infelizmente, foi efémero. Marcelo e sua comitiva seguiram rapidamente para as viaturas, enquanto a multidão começava a dispersar. Ouvi então alguém comentar, com um tom calmo e desinteressado:

  • Vai dormir no Palace.

Naquele instante, senti uma onda de curiosidade avassaladora. Sem perder tempo, pedi à minha mãe para irmos até ao Palace, o hotel onde Marcelo se hospedaria. Ela aceitou, e lá fomos nós, apressados, para o carro, dirigindo-nos pela estação da CP em direção ao hotel.

Quando estacionámos junto à “taça” do Palace, a imagem do hotel era, como sempre, imponente. Marcelo, que já tinha subido os primeiros degraus da escadaria, ainda estava à vista. Ia saudando diversas pessoas, que, como eu, o desejavam cumprimentar. Já se dirigia para a porta de entrada quando atingimos o cimo da escadaria. A minha mãe, com um sorriso travesso, tocou-me nas costas e disse baixinho:

  • Vai!

Eu não pensei duas vezes. Corri em direção ao Marcelo, com o coração a bater forte no peito. Puxei-lhe suavemente pelo casaco. Ele virou-se e, ao perceber que não havia mais ninguém além de mim, sorriu, um sorriso cativante que parecia iluminar tudo à sua volta. Com um gesto calmo e sereno, estendeu-me a mão. A sua mão era enorme comparada com a minha, mas, mesmo assim, apertei-a com força, como se aquele gesto representasse uma conexão simbólica entre o passado e o futuro, entre o regime de ontem e a promessa de um novo amanhã.

Marcelo deu meia-volta e entrou no Palace. E eu, ali, no limiar daquele momento único, não conseguia deixar de sentir que, apesar de tudo, era aquilo que eu mais desejava: um simples aperto de mão, mas que marcava um instante na história da minha vida.

Nunca mais me esqueci desse momento.


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