“O rouquinho nunca mais morre”, dizia o Jorge, o meu irmão mais velho, sempre com aquele tom meio irónico e meio sério que era tão característico dele. A alcunha de rouquinho estava, claro, associada ao timbre inconfundível da voz de Salazar, ligeiramente aguda, cujos discursos me faziam lembrar a leitura do evangelho no púlpito da igreja.
À medida que o tempo passava, o Jorge repetia a sua
frase com uma espécie de consolo, como quem tem uma verdade imutável nas mãos:
- O rouquinho nunca mais
morre!
Mas um dia, com um sorriso de satisfação nos lábios, o
Jorge disse:
- O rouquinho caiu da cadeira.
Pode ser que seja desta…
De facto, foi após essa queda que Salazar sofreu as
lesões que o impediram de continuar como Presidente do Conselho de Ministros.
Faria ainda alguns anos de vida, mas o seu poder político já estava
irremediavelmente quebrado. Marcelo Caetano, o novo rosto da ditadura, foi
então chamado para o substituir, ocupando o cargo até ser deposto no 25 de Abril de 1974.
A minha irmã Luísa, que na altura estudava no Porto,
não perdia oportunidade para desdenhar do governo. Com aquele espírito rebelde
próprio da juventude, dizia que os homens do regime, e seus comparsas, ficavam
com todos os “tachos” e ainda os rapavam bem rapados. Eu, com a imaginação
fértil de um miúdo, via um bando de salteadores a invadir uma cozinha, a
devorar tudo o que encontravam nas panelas e, no final, a roubar as próprias
panelas.
Recordo-me também de uma piada que circulava na
altura, sobre uma marca de papel higiénico chamada SMART. As letras, de
forma jocosa, formavam uma sigla que dizia: Salazar Morreu Agora
Resta Tomás. E, se virássemos o papel contra a luz e o
invertêssemos, a palavra “WC” transformava-se magicamente em “MC”, assinando o
produto com o nome do novo presidente: Marcelo Caetano.
Foi no início do seu mandato que Marcelo Caetano
decidiu fazer uma visita ao norte do país, e a sua passagem por Vidago ficou na
minha memória. Naquela altura, eu, ainda muito jovem e sem grandes noções
políticas, mas sempre atento às conversas do meu irmão, imaginei que o novo
presidente fosse trazer algo de novo, algo de bom.
Quando soube que ele viria a Vidago, pedi
imediatamente à minha mãe, que estava em casa comigo (o meu pai, na altura,
estava em São Tomé), para irmos vê-lo. Ela, com aquele seu espírito colaborativo
que sempre teve, concordou sem hesitar. Era fim de tarde, e estacionámos o Peugeot 404 em frente ao Délio, já
virado para regressar a Oura.
À medida que a multidão se ia aglomerando no largo
onde existia a Farmácia Costa e também na parte inferior da Rua Alves Teixeira,
a atmosfera começava a ganhar uma vibração palpável. Os tons cinzentos
dominavam: homens vestidos com os seus fatos domingueiros, chapéus na cabeça e
os rostos sérios, expectantes, aguardavam com ansiedade pela chegada do novo
presidente. As mulheres, recatadas, com lenços na cabeça, observavam em
silêncio, com os seus olhos brilhando de curiosidade e uma ponta de esperança.
Subimos as escadas da farmácia, à procura de um bom
ponto de observação. E foi então que ele apareceu. A noite já tinha caído e o
ar frio fazia-nos arrepiar a pele. Lá ao fundo, surgia Marcelo, vindo da
Avenida Conde Caria, rodeado por homens de semblante grave e vestes escuras.
Mas ele, por sua vez, era um contraste: sorria e cumprimentava as pessoas com
uma simpatia contagiante. O entusiasmo da multidão foi imediato, como uma onda,
quase o engolindo: “Viva!”, “Viva o Sr. Presidente!”, “Viva Marcelo!” – os
gritos eram calorosos e cheios de fervor.
Eu estava fascinado, imerso naquele momento histórico
que, para mim, tinha um brilho especial. A excitação, a adrenalina, faziam
aquele momento parecer eterno, mas, infelizmente, foi efémero. Marcelo e sua
comitiva seguiram rapidamente para as viaturas, enquanto a multidão começava a
dispersar. Ouvi então alguém comentar, com um tom calmo e desinteressado:
- Vai dormir no Palace.
Naquele instante, senti uma onda de curiosidade
avassaladora. Sem perder tempo, pedi à minha mãe para irmos até ao Palace, o
hotel onde Marcelo se hospedaria. Ela aceitou, e lá fomos nós, apressados, para
o carro, dirigindo-nos pela estação da CP em direção ao hotel.
Quando estacionámos junto à “taça” do Palace, a imagem
do hotel era, como sempre, imponente. Marcelo, que já tinha subido os primeiros
degraus da escadaria, ainda estava à vista. Ia saudando diversas pessoas, que,
como eu, o desejavam cumprimentar. Já se dirigia para a porta de entrada quando
atingimos o cimo da escadaria. A minha mãe, com um sorriso travesso, tocou-me
nas costas e disse baixinho:
- Vai!
Eu não pensei duas vezes. Corri em direção ao Marcelo,
com o coração a bater forte no peito. Puxei-lhe suavemente pelo casaco. Ele
virou-se e, ao perceber que não havia mais ninguém além de mim, sorriu, um
sorriso cativante que parecia iluminar tudo à sua volta. Com um gesto calmo e
sereno, estendeu-me a mão. A sua mão era enorme comparada com a minha, mas,
mesmo assim, apertei-a com força, como se aquele gesto representasse uma
conexão simbólica entre o passado e o futuro, entre o regime de ontem e a
promessa de um novo amanhã.
Marcelo deu meia-volta e entrou no Palace. E eu, ali,
no limiar daquele momento único, não conseguia deixar de sentir que, apesar de
tudo, era aquilo que eu mais desejava: um simples aperto de mão, mas que
marcava um instante na história da minha vida.
Nunca mais me esqueci desse momento.
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